O período após a Segunda Guerra Mundial marcou um divisor de águas para a afirmação dos direitos culturais. Foi nesse contexto que a comunidade internacional passou a reconhecer a cultura como parte fundamental da dignidade humana. Esse entendimento foi consolidado em documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), que asseguram a todas as pessoas o direito de participar da vida cultural, usufruir dos avanços científicos e proteger suas criações intelectuais.
Mas, como sabemos, reconhecer um direito não significa automaticamente torná-lo real. No Brasil, um país moldado por desigualdades históricas e heranças coloniais, o campo cultural ainda espelha e reproduz hierarquias profundas. Expressões indígenas, quilombolas, periféricas e populares seguem enfrentando exclusão simbólica e material, enquanto os repertórios hegemônicos mantêm posições privilegiadas.
Nos últimos anos, a relação entre cultura e direitos humanos tem ganhado mais espaço nos debates acadêmicos e nos movimentos sociais, embora ainda chegue lentamente ao debate público mais amplo. O pensamento de Herrera Flores (2009) é fundamental para entender essa discussão. Para ele, tanto o universalismo tradicional quanto o multiculturalismo liberal fracassam em promover igualdade real: o universalismo tende a apagar singularidades, enquanto o multiculturalismo cria guetos simbólicos e reforça hierarquias entre culturas dominantes e dominadas.
É nesse cenário que surge a proposta da interculturalidade. Mais do que convivência entre diferenças, ela reconhece que conflito, negociação e contradição são partes naturais da vida social. Aproximando-se das leituras de Lukács (1979) e McLaren (2000), a interculturalidade busca superar a reificação e construir práticas sociais híbridas, solidárias e transformadoras.
O desafio contemporâneo dos direitos culturais, segundo Flores, é justamente romper tanto com imposições universalistas quanto com particularismos rígidos. A interculturalidade defende uma “ética do encontro”: uma universalidade construída a partir das experiências concretas dos povos, e não de cima para baixo. Isso significa criar espaços reais de diálogo entre as diferenças, capazes de enfrentar o avanço de narrativas de ódio e de políticas excludentes. A cidadania cultural, portanto, só se realiza plenamente quando reconhece o outro como parte da humanidade, nunca como ameaça.
No Brasil, essas tensões ficam muito claras nas políticas públicas de cultura. Durante décadas, instituições e agentes culturais dos grandes centros urbanos foram amplamente favorecidos. Recursos e equipamentos se concentraram no eixo Sul-Sudeste, enquanto regiões como Norte e Nordeste permaneceram em desvantagem. Como agente cultural atuando em contextos periféricos e comunitários, vejo diariamente como é difícil garantir o direito à cultura na prática: falta de recursos, ausência de políticas continuadas, desvalorização das práticas tradicionais e ancestrais e o distanciamento das instituições públicas dos territórios.
A fragilidade institucional nas regiões Norte e Nordeste é um ponto chave. Muitas secretarias e fundações estão centralizadas nas capitais, distantes das periferias e das áreas rurais. Isso nos leva a uma pergunta fundamental: como construir cidadania cultural sem instituições capilarizadas e com um Sistema Nacional de Cultura ainda incompleto?
A ausência de redes locais de articulação, formação e gestão enfraquece a efetividade das políticas culturais. Sem essas estruturas, muitos territórios continuam dependentes de ações pontuais, descontínuas e, não raro, orientadas por lógicas eleitorais ou de mercado.
Nesse cenário, o papel do agente cultural precisa ser compreendido em toda a sua amplitude. É alguém que atua na fronteira entre o fazer artístico, a política pública e os processos de participação social. Investir em estratégias criativas de mediação, formação e participação, sempre orientadas pela diversidade e pela justiça social, é essencial para consolidar uma cidadania cultural inclusiva e fortalecer o papel transformador do agente cultural nos territórios.
Fortalecer os direitos culturais como dimensão essencial da cidadania exige um novo olhar sobre a relação entre Estado, cultura e sociedade. Em um país plural como o Brasil, isso significa compreender a cultura como espaço de emancipação identitária e social. Para isso, é imprescindível descentralizar instituições, valorizar a diversidade e qualificar os processos de formulação das políticas culturais.
O desafio está em transformar o discurso em prática, em políticas efetivas, ações contínuas e iniciativas que produzam justiça cultural e social. Em um país atravessado por desigualdades raciais, regionais e econômicas, a garantia dos direitos culturais depende da articulação entre instituições públicas, agentes culturais e os próprios territórios. O Sistema Nacional de Cultura aponta caminhos importantes, ainda que avance entre tensões e disputas.
Somente com uma abordagem crítica, plural e participativa conseguiremos transformar a cidadania cultural em realidade, uma cidadania que afirme a dignidade de todos os povos e contribua para reduzir as desigualdades socioculturais e raciais que estruturam o Brasil.