A sociedade brasileira carrega uma herança colonial e escravocrata que estruturou hierarquias profundas entre corpos, saberes, estéticas e linguagens. Essas desigualdades históricas se reproduzem no campo cultural, onde o acesso a recursos, circulação e reconhecimento ainda se concentra em grupos hegemônicos. Raça, gênero, classe, território, orientação sexual e geração se entrelaçam produzindo camadas simultâneas de exclusão — e é justamente nesse ponto que a interseccionalidade se apresenta como lente indispensável.
Patricia Hill Collins oferece uma das contribuições mais poderosas para esse debate. Ao analisar as dimensões estrutural, disciplinar, hegemônica e interpessoal do poder, Collins evidencia como múltiplas opressões se reforçam mutuamente. No campo cultural, essas dimensões se materializam tanto nas estruturas institucionais — editais, conselhos, orçamentos, sistemas de circulação — quanto no plano simbólico: quais corpos são vistos como produtores legítimos? Quais estéticas são valorizadas? Quais territórios aparecem como centros irradiadores de cultura?
Mesmo quando há avanços na representatividade, as estruturas continuam operando segundo lógicas centralizadoras. O próprio Ministério da Cultura, ainda que hoje liderado por uma ministra negra e nordestina, mantém uma composição interna majoritariamente branca e concentrada no eixo Sul-Sudeste. No nível municipal, o problema se agrava com a nomeação recorrente de gestores sem formação em políticas culturais, o que fragiliza o planejamento e a capacidade de implementação.
Essas contradições mostram que o desafio da diversidade no campo cultural brasileiro ultrapassa a presença simbólica: envolve linguagem, metodologia, gestão e epistemologias de trabalho que sejam coerentes com a pluralidade do país. Enquanto o agente cultural estiver submetido a esse ecossistema desigual de governança, sua capacidade de incidência será limitada. Por isso, a atuação em rede, com autonomia e enraizamento territorial, torna-se estratégica.
O agente cultural que atua diretamente nos territórios experiencia aquilo que frequentemente é invisível às instituições centralizadas: as dinâmicas sociais, as urgências, as potências, os conflitos, os silenciamentos e as invenções que moldam a vida cultural cotidiana. Por isso, seu papel precisa ir além da execução de atividades: trata-se de um mediador político e pedagógico capaz de tensionar, qualificar e alargar o sistema cultural para que ele reflita, de fato, a diversidade do país.
Reconhecer as interseccionalidades — de raça, gênero, classe, território, geração ou deficiência — amplia os horizontes da política cultural. Quando esse reconhecimento se associa a processos formativos na base, surge a possibilidade real de uma virada epistemológica nas políticas públicas de cultura, permitindo que novos referenciais, valores e práticas sejam incorporados.
Embora ainda esteja em circulação inicial no debate público brasileiro, a interseccionalidade já produz efeitos sobre certas arenas políticas. Em muitas delas, múltiplas demandas emergem simultaneamente, revelando a inadequação dos modelos tradicionais de gestão e fomento. A abordagem interseccional evidencia que desigualdades não podem ser tratadas como problemas isolados; elas se potencializam em sua articulação.
Ainda assim, falta metodologia, prática e amadurecimento institucional para lidar com essa complexidade. O campo cultural brasileiro segue orientado por lógicas que privilegiaram, historicamente, determinados grupos e territórios. Ampliar o acesso é importante, mas insuficiente: é preciso repensar os próprios critérios de avaliação, os formatos de editais, as linguagens burocráticas, as ferramentas de gestão e os métodos de tomada de decisão.
No interior dos movimentos negros, a temática também tem tensionamentos. O massacre ocorrido no Rio de Janeiro em 28 de outubro de 2025 — quando mais de 120 jovens negros foram assassinados — reacendeu um debate urgente: o genocídio da juventude negra precisa estar no centro das políticas públicas. Para alguns setores, certas práticas institucionais inspiradas na interseccionalidade acabam produzindo maior visibilidade e oportunidades para mulheres negras, eclipsando a situação crítica dos homens negros jovens, que são os mais diretamente afetados pela violência letal. Isso evidencia que a abordagem interseccional, quando aplicada de modo desarticulado, pode fragmentar o marcador racial e produzir assimetrias internas.
No campo das políticas culturais, vemos movimentos iniciais de institucionalização da interseccionalidade, fruto direto da pressão da sociedade civil. A Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc incorporaram, em suas diretrizes, mecanismos de ação afirmativa que obrigam gestores a criar cotas de raça e gênero, critérios de pontuação que valorizam a descentralização geográfica e estímulos à participação de grupos historicamente excluídos. É uma mudança significativa: a equidade deixa de ser apenas expectativa e se torna exigência jurídica.
Mas a interseccionalidade não pode ser reduzida à aritmética das cotas. Ela exige articulação profunda entre critérios, metodologias e práticas institucionais capazes de desmontar estruturas de exclusão. A gestão pública ainda ensaia passos iniciais nesse sentido, sem compreender plenamente o caráter político da inclusão, da equidade e da justiça social a partir da cultura.
Para o agente cultural, o desafio está em assumir a cultura como direito e, ao mesmo tempo, escolher o locus analítico que melhor dialogue com sua realidade. Isso implica tensionar estruturas, criar novas metodologias, disputar agendas, fortalecer processos participativos e formular políticas de base comunitária. Quando articulados em redes — como os Pontos de Cultura, Comitês de Cultura, fóruns, conselhos e colegiados — esses agentes conseguem ampliar o enfoque interseccional e fortalecer uma governança cultural mais democrática e representativa.
Ainda assim, falta consolidar práticas pedagógicas e metodológicas nos espaços de gestão compartilhada. É preciso repensar os próprios mecanismos de fomento: quem acessa os recursos? Quais linguagens são legitimadas? Quem fica de fora? Como os critérios são definidos? Sem responder a essas questões, a interseccionalidade corre o risco de se tornar apenas uma formalidade.
A interseccionalidade no campo cultural é, ao mesmo tempo, horizonte de transformação e campo de tensões. Ela oferece ferramentas robustas para compreender as desigualdades, mas ainda carece de consensos internos — especialmente diante da urgência do genocídio da população negra. Em muitos casos, a fragmentação das pautas e a desigualdade entre marcadores geram críticas e apontam a necessidade de centralizar a luta antirracista como eixo estruturante.
O desafio, portanto, é fazer da interseccionalidade uma prática que não dilua a luta racial, mas a fortaleça. Isso exige repensar mecanismos de fomento, modelos de gestão, processos formativos e concepções de política pública. Cabe aos agentes culturais — enquanto mediadores e sujeitos políticos de transformação — sustentar essa disputa e contribuir para a construção de políticas culturais emancipadoras, capazes de reparar desigualdades históricas e afirmar a cultura como direito fundamental de todos os povos.
Somente assim será possível consolidar uma política cultural que não se limite à representatividade, mas promova justiça cultural, justiça racial e igualdade substantiva, em diálogo direto com a redução das desigualdades estruturais do país.